Salvador completa 474 anos como uma cidade diversa, tanto em sua cultura, quanto em suas desigualdades

 

Primeira capital do país, Salvador – originalmente São Salvador da Bahia de Todos os Santos – é rotineiramente citada como berço cultural do Brasil. Apelidada de Roma Negra, a forte influência dos povos africanos é percebida com facilidade nos costumes, ritos, culinária e até modo de viver dos soteropolitanos, o que difere da arquitetura e configuração urbana da cidade, que foi projetada pelos portugueses que aqui chegaram tendo como base Lisboa, em Portugal.

Contraditória por natureza, Salvador estende essa dicotomia para todos os aspectos da metrópole, que fincou sua identidade – hoje internacionalmente reconhecida – no contraste criado entre suas qualidades e suas mazelas; entre o sagrado e o profano; entre o Bahia e o Vitória; entre o paredão e o Teatro Castro Alves; entre a favela e a orla.

Se por um lado temos – proporcionalmente –  a maior população negra do país e nos orgulhamos, celebramos, e capitalizamos a cultura afro-brasileira para fomentar a cena cultural da cidade através de projetos culturais, shows, espetáculos de dança, boates, coletivos sociais, e até eventos internacionais – como o afropunk – ao mesmo tempo estamos na lista das 50 cidades mais violentas do mundo, onde a população negra – em especial jovens negros do sexo masculino – é dizimada através da violência policial num ciclo aparentemente interminável de falta de oportunidades, baixo acesso à educação e criminalidade.

O primeiro prefeito de Salvador, José Luís de Almeida Couto, assumiu o cargo em 1893, exatamente 130 anos atrás. Até meados de 1985, o país seguia sob regime militar e os representantes públicos eram escolhidos de maneira indireta. Após a redemocratização da República e implementação do voto direto,38 anos depois, a capital negra do país segue sem jamais ter eleito através das urnas um representante negro – ou pelo menos autodeclarado como tal. 

Não há melhor exemplo de toda essa desigualdade existente em Salvador que a festa pela qual a cidade faz seu nome e boa parte do seu arrecadamento: o carnaval. A celebração que surgiu da vontade quase institiva da população em festejar – e do leve empurrãozinho dado por Dodô e Osmar criando o que hoje conhecemos como trio-elétrico – se tornou uma espécie de experimento social das dinâmicas raciais e de poder da cidade, onde o público branco, geralmente estrangeiro e com dinheiro para bancar o conforto dos camarotes patrocinados e abadás que custam três salários mínimos, aproveitam o melhor da capital enquanto a população negra e periférica – da qual se originou a festa – se espreme nas extremidades da avenida, empurradas para trás das cordas que isolam os trios, renegadas às sobras do circuito.

Movimentos de contra-cultura, alguns deliberadamente socio-políticos e outros apenas reflexo das gerações atuais, como o “rolêzinho”, chacoalham o status-quo e tentam incomodar a comodidade que mantém a branquitude da capital confortável à quase 500 anos. Hoje, por exemplo, é mais comum ver as praias – programa de lazer mais comum e um dos poucos gratuitos da cidade – anteriormente catalogadas como “elitistas”, sendo ocupadas por um público que até pouco tempo atrás não se sentia confortável para frequentar locais como o Porto da Barra, a Praia do Buraquinho e, a ainda polêmica, Gâmboa.

Este ano Salvador completa 474 anos de existência, urbanamente muito diferente de quatro séculos atrás, porém trazendo consigo muitos aspectos sociais e políticos desse passado. O crescimento econômico, cultural e populacional da cidade parece não se refletir na melhora de qualidade de vida da população, em especial a parcela negra, que segue marginalizada, sub-representada e à mercê do racismo sistêmico que ceifa vidas inocentes todos os dias.

Neste aniversário os votos são para que a Soterópolis seja um pouco mais altruísta, pois já passou da hora de comemorar a população que a mantém viva – social, política e culturalmente – e, quem sabe, dar de presente uma cidade cujo povo que a construiu realmente merece.

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